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A Equoterapia e o Lúdico na Reabilitação




 



Implementada ao inicio de 2008, o Centro de Equoterapia Recanto Nossa Senhora de Lourdes, desenvolveu atendimentos em equoterapia voltados para o publico especial durante todo o período deste ano. De um grupo de 13 pacientes (6 vagas particulares, 7 vagas gratuitas) atendidos todas as semanas, as quarta-feiras, por 30 minutos em cada sessão, selecionou-se um dos quadros clínicos para o presente relato de experiência.

Esta exposição tem como função demonstrar a aplicação bem sucedida desta técnica complementar de reabilitação em um caso clinico neurológico e psiquiátrico e nortear os usos criativos e  lúdicos desta prática nos diferentes âmbitos e práticas reabilitativas.

Sobre a Instituição

O Centro de Reabilitação Recanto Nossa Senhora de Lourdes é uma entidade sem fins lucrativos, que atende em período integral, sob a forma de aulas de apoio educacional especializado e grupos terapêuticos, crianças portadoras de Deficiência Mental (leve ou moderada), síndromes genéticas, neurológicas e transtornos psiquiátricos com idades entre 6-18 anos, previamente avaliadas e aprovadas pela equipe ambulatorial do centro. O Ambulatório é aberto ao público, recebendo demanda da secretaria da educação, secretaria de saúde e atua como equipe multiprofissional  incluindo neuropediatria, psiquiatria, fisioterapia, psicologia, psicopedagogia, fonoaudiologia, e terapia ocupacional para avaliação diagnostica, encaminhamento e/ou tratamento da população encaminhada. Na instituição as crianças participam de programas educacionais, oficinas, passeios, atividades lúdico-recreativas e projetos terapêuticos elaborados singularmente para cada uma (MENDES & SCHUBERT, 2006).

Implementado em 2008 o Centro de Equoterapia conta com uma equipe multiprofissional formada por Neuropediatra, Fisioterapeuta, Psicólogo, Fonoaudiologia, Terapeuta Ocupacional e Pedagoga todos aptos e com formação para atuação em equoterapia (pela ANDE-Brasil). Como todo centro de equoterapia, dispõe de uma equipe externa de cuidados especializados para os 4 eqüinos disponíveis para equoterapia e de um tratador e condutor de eqüinos que encontra-se constantemente presente na instituição. O centro atende crianças de 3 a 14 anos com indicação e necessidade de seguimento no tratamento complementar de equoterapia. Mesmo vindo com indicação médica externa a criança é avaliada por nossa equipe multiprofissional e posteriormente em discussão clinica é decidido se a criança será acompanhada por nossa equipe e quais a proposta e estratégias utilizadas para obter melhoras em cada caso singular. Atualmente a equipe disponibiliza inicialmente 13 vagas para o trabalho individual em equoterapia, todo paciente é atendido semanalmente com sessões de 30 minutos de duração por 6 meses ininterruptos. A equipe de Equoterapia realiza também grupos de equitação lúdica e de aproximação de animais com a clientela interna a qual atende.

Equoterapia: breve fundamentação

Equo terapia ( Equo: do latim aequus, relativo à Equus, ‘cavalo’/  Terapia: relativo à terapêutica, que é a parte da medicina que estuda e põe em prática os meiosadequadospara aliviar ou curar os doentes) é um método terapêutico e educacionalqueutiliza o cavalo dentro de uma abordagem interdisciplinar, nas áreas de saúde, educação e equitação, buscando o desenvolvimento biopsicossocial de pessoas portadoras de deficiência e/ou com necessidades especiais. Ela emprega o cavalo como agente promotor de ganhos físicos, psicológicos e educacionais. Esta atividade exige a participação do corpo inteiro, contribuindo, assim, para o desenvolvimento da força, tônus muscular, flexibilidade, relaxamento, conscientização do próprio corpo e aperfeiçoamento da coordenação motora e do equilíbrio..A interação com o cavalo, incluindo os primeiros contatos, o ato de montar e o manuseio final, desenvolve novas formas de socialização, autoconfiança e auto-estima segundo a ANDE-BRASIL (2008).

Durante a sessão de equoterapia, obrigatoriamente estão presentes 3 profissionais: O condutor está sempre presente, e os dois guias laterais, que neste caso podem ser o fisioterapeuta, psicólogo, fonoaudióloga, terapeuta ocupacional ou pedagoga.

Como exposto por LEAL & NATALIE (2007), em um artigo abordando os ganhos terapêuticos que pacientes tem no contato e realizam trocas afetivas com animais dos mais diversos tipos e portes: “a Equoterpaia é a única forma de tratamento com animais usualmente prescrita por médicos (..) o tratamento foi reconhecido como método terapêutico pelo Conselho federal de medicina em 1997”.

UZUN (2005) lista algumas deficiências e doenças que alcançam melhoras por meio da equoterapia: paralisia cerebral, acidente vascular encefálico; atraso no desenvolvimento neuropsicomotor; síndrome de down e outras síndromes; traumatismo crânio-encefálico; lesão medular; esclerose múltipla; disfunção na integração sensorial; dificuldades da aprendizagem ou linguagem; distúrbios do comportamento; hiperatividade; autismo; traumas; depressão; stress, entre outras.

GUIMARÃES (1993) e WICKERT (1995) explicam de que forma a equoterapia alcança tais resultados utilizando a cinesiologia implicada na montaria do cavalo:  comparando os movimentos humanos executados em seu deslocamento (ao passo), podemos perceber que este é idêntico ao executado pelo cavalo, quando este também se desloca ao passo. É este movimento que gera os impulsos que acionam o sistema nervoso para produzir as respostas que vão dar continuidade ao movimento e permitir o deslocamento (ação neurofisiológica). Aquele que monta sobre o cavalo é obrigado a fazer milhares de ajustes corporais durante a montaria para manter equilíbrio e coordenação motora – e ainda recebe a estimulação própria da andadura do cavalo ( que segue tridimensionalmente, tal como a andadura do homem: para frente e trás, para ambos os lados e para cima e para baixo).

A equoterapia é um tratamento indicado para as crianças principalmente pelo diferencial que o animal traz, como presença física e possibilidade relacional. Por intermédio do contato com o animal as crianças começam muitas vezes a falar, contar histórias, sorrir, brincar espontaneamente – quebra-se a imagem temerosa, dolorosa ou entediante que a criança tem do que envolve o seu tratamento. O animal abre a possibilidade de trabalho com a criança pois torna-se logo um atrativo e diferencial no tratamento que está sendo proposto. O cavalo funciona como ponto de sedução em relação à criança (e mesmo ao adulto) pela imponência  e poder transmitida pelo mesmo. Por vezes é pelo contato com animal que a criança fica mais descontraída para conversar e mais receptiva com as orientações ou questionamentos feitos pelo profissional que a está acompanhando (SCHUBERT, 2005).

A prática: exposição de um caso clínico

Tobias , nascido em Junho de 1999, foi avaliado por nossa equipe multiprofissional em ambulatório durante os meses de fevereiro e março 2008, sendo levantada hipótese diagnóstica da Sindrome de Klinefelter (Q981) com comorbidade  psiquiátrica de autismo atípico (F84.1). Não fala, a não ser por gestos e gritos. Quadro de isolamento social e arredio ao contato físico. Os pais buscavam exatamente um tratamento equoterapico, dizendo ter sido este indicado por diversos médicos no longo percurso clínico de Tobias.

Por seu comportamento heteroagressivo, negativista, instabilidade de humor acentuada e medo de cavalos levantamos como proposta terapêutica trabalhar a disciplina e tolerância por meio da equoterapia. Um longo trabalho de aproximação seria necessário, para que Tobias se vinculasse com equipe e permitisse a montaria sobre o cavalo, que ele admirava de longe mas ao qual não se atrevia aproximar.

A partir das primeiras sessões com Tobias tivemos mais dados para elaborar a estratégia terapêutica. O mesmo reagia agressivamente à chegada da fisioterapeuta e psicólogo, chutando, gritando e cuspindo. Por não utilizar o código lingüístico, a não ser por gritos e utilização de sinais e gestos, era muito difícil a avaliação do que estaria acontecendo com o mesmo e o que o incomodava tanto. Porém a aproximação do condutor de cavalos, Marcos, era permitida e foi neste ponto que pudemos traçar nossa estratégia. Marcos passou a ser o profissional que recebia Tobias no ambulatório, perto da rampa de montaria. Ele introduzia a Tobias os rituais de cuidados gerais, higiene e alimentação dos cavalos e pedia a ajuda do paciente para preparar o cavalo para montaria. 

Esta cena inicial funcionou bem. Tobias chegava animado e não agressivo, ajudava Marcos no cuidado com o cavalo, não demonstrava mais medo em relação aos cavalos e gostava de  levá-los para passear – conduzindo-os juntamente com Marcos pela guia.

Aos poucos fisioterapeuta e psicólogo foram se aproximando do cenário – por vezes éramos ignorados, outras vezes encarados com desconfiança. Foi na sexta sessão de Tobias que, após Marcos o montar sobre o cavalo, ele nos convidou, após certo momento de insegurança sobre o cavalo e sorriso nervoso para Marcos, com um gesto de “venham” com a mão, para acompanhá-lo lateralmente.

A estratégia seguinte seria fazer uso da manta e de diversos solos para estimulação apropriada enquanto Tobias montava – logo percebemos que exercícios físicos e de alongamento estavam inicialmente fora de questão para o mesmo, sendo rechaçados com cuspidas, chutes e gritos.

Após a décima quinta sessão nossas pontuações em relação a seu comportamento negativista e mau humorado foram se tornando mais pontuais e firmes. Apontávamos que ele não continuaria montado se mantivesse tal comportamento e não permitiríamos que fizesse as atividades que tanto gostava se insistisse em seus comportamentos pueris e birrentos. Por vezes tais intervenções funcionavam perfeitamente, quando falhavam, percebíamos que não dar atenção ao seu comportamento e ignorá-lo funcionava tão bem quanto uma intervenção firme: ele se dava por vencido e pedia gestualmente que déssemos exercícios ou indicássemos o que fazer.

E tais exercícios eram então feitos de forma animada e lúdica. Utilizando bambolês, letras coloridas, miniaturas de animais, bolas e cones. Apontava-se de forma alegre as conquistas que Tobias alcançava: seja acertar a bola na cesta de basquete, enquanto montava a cavalo; seja conseguindo equilibrar vários bambolês coloridos nos dois braços; seja direcionar o cavalo em zigue-zague pelos cones ou ainda, apontando as cores pedidas nas pranchas pedagógicas.

Se durante a sessão de Equoterapia, seja ela realizada por um fisioterapeuta, um psicólogo, um fonoaudiólogo, um educador físico, a atividade é realizada por meio da ludicidade, então algo de positivo está acontecendo além dos resultados físicos esperados pois, o brincar é por si mesmo uma terapia (WINNICOTT, 1975).

A mãe pontuou que Tobias sabia exatamente o dia da equoterapia pois pedia logo cedo para ir ao ambulatório –  desenhou cavalos em casa – contou que o mesmo parecia mais seguro de si, perdera o medo de subir escadas, fato que apresentava antes. 

UZUN (2005) pontua em seu livro que a equoterapia, entre outros benefícios traria: socialização; auto-confiança; equilíbrio e atuaria no alívio do stress. Percebemos que apesar de difícil vinculação, por intermédio da equoterapia Tobias permitiu que 3 pessoas novas entrassem em sua vida e até permitiu que estas lhe direcionassem durante os atendimentos. Pela atuação física e psíquica que a equoterapia alcança, na ativação e estimulação de diversas funções do corpo humano tais como a respiração, a fala, a atenção, a memória, a cognição, a auto-imagem, a auto confiança, entre outros, a criança sente-se estimulada a seguir em frente e participar ativamente do tratamento. Por vezes ela mesma estabelece desafios a serem pouco a pouco  superados (SCHUBERT, 2005).

Num trabalho individual de consultório, seja psicoterapeuticamente ou fisioterapicamente, quebrar a resistência de Tobias seria algo a longo prazo e comprometeria a própria vinculação conquistada – fato relatado varias vezes pelo pai e pela mãe de Tobias – o quão difícil era o trabalho de socialização do mesmo e como muitos tratamentos fracassavam por não ter a participação, vontade e vinculação de Tobias implicada.

Porem, por esta vinculação ter sido feito de forma lúdica e desafiadora, parece ter conquistado a vontade de Tobias. Na brincadeira, a pessoa tem a oportunidade de externalizar seus medos, receios, seus perigos internos projetados no mundo externo, podendo com uma escuta atenta por parte terapeuta, vir a obter triunfo sobre suas dificuldades. A brincadeira age como um facilitador de uma organização interna mais saudável. O acúmulo de experiência gratificantes, pode levar o praticante a fortalecer sua crença em bons relacionamentos e auto-confiança, o que fortalece o seu aspecto emocional (WINNICOTT, 1975)

O terapeuta que percebe que para o praticante, o cavalo é um objeto transicional, entende que a Equoterapia é muito mais do que se utilizar do movimento do animal como uma técnica de reabilitação. É um instrumento terapêutico global, que atua em diversas dimensões, biopsicossociais e até mesmo afetiva, podendo trazer um novo animo para a vida de alguém. (RAMOS, 2007)

Nas ultimas sessões, apesar de Tobias sempre apresentar antes ou depois do atendimento alguma cena de desagrado, negativismo, resistência – sempre montava no cavalo, participava dos exercícios de alongamento, físicos e pedagógicos obedecendo  prontamente aos comandos feitos por ambos os guia laterais, fisioterapeuta e psicólogo – participava por vezes brincando, sorrindo e fazendo graça.

WINNICOTT(1975) postula que: “Parece-me válido o principio geral de que a psicoterapia é efetuada na superposição de duas áreas lúdicas, a do paciente e a do terapeuta. Se o terapeuta não pode brincar, então ele não se adequa ao trabalho. Se é o paciente (praticante) que não pode, então algo precisa ser feito para ajudá-lo a tornar-se capaz de brincar, após o que a psicoterapia pode começar. O brincar é essencial porque nele o paciente manifesta sua criatividade”. Havia na agressividade e resistência de Tobias uma linguagem de vinculação com o mundo – por vezes ela era aceita e transformada em brincadeira, por vezes pontuada e inibida. Nesta modulação, de pouco a pouco Tobias foi percebendo qual era o permitido e qual era o proibido na pratica de equoterapia. Esta noção foi desenvolvendo, alem do conceito de certo e errado, a noção também de carinho, respeito e agressão, desrespeito. Pela própria reação do cavalo, Tobias podia perceber como o puxar da crina, ou bater na orelha deste causava reações de desagrado – o animal parava de andar – a brincadeira cessava. A repetição disto foi formando uma noção de ato e conseqüência.

É um caso que terá muito beneficio dando seguimento ao tratamento equoterapico principalmente por causa de suas dificuldades posturais e mesmo pelos benefícios sociais e de vinculação alcançados pelo contato com equipe de equoterapia. Percebemos que em 6 meses de tratamento Tobias tornou-se mais sociável, permitindo a aproximação da equipe e demonstrando maior tolerância a comando e a pedidos feitos por tal equipe. Sabemos quão importante é, para o trabalho em inclusão e reabilitação desta clientela, contar com o apoio e participação ativa do atendido pois, sem ele, não há tratamento possível

Conclusão

Apesar  do quadro clínico envolvido na presente descrição, a equoterapia, como método reabilitativo complementar, mostrou-se pontual no desenvolvimento de resultados positivos, principalmente quanto a: vinculação interpessoal, confiança e trocas afetivas com os terapeutas, diminuição nos fenômenos de agressividade e de fobia, segurança do paciente para novos desafios, adequação e equilibração postural sobre o cavalo.



Referencia Bibliográfica

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EQUOTERAPIA (ANDE-Brasil) – extraído da home-page: http://www.equoterapia.org.br/equoterapia, Brasília, setembro, 2010.

 GUIMARÃES, F. L. – Hippoterapia: conceito e indicações. Temas sobre Desenvolvimento, Edições Científicas Memnon, v.3, N.14, São Paulo, 1993
 
LEAL, G & NATALIE, K – Animais Terapeutas. Revista Viver Mente & Cerebro. Duetto Editorial e Scientific American, N.169, São Paulo, Fevereiro 2007

MENDES, V. & SCHUBERT, R. - Centro de Reabilitação para crianças com necessidades especiais Recanto Nossa Senhora de Lourdes. Apresentado no II Congresso Brasileiro de Psicologia, SP, Brazil, setembro 2006

SAMPEDRO, R.M.F. & FORESTI,J. – Efeitos da equoterapia em relação a funcionalidade de um portador de paralisia cerebral. Revista Equoterapia ANDE, Brasília, N.11, Julho 2005

RAMOS, R. M. - A equoterapia e o brincar - relações trasnferenciais na equoterapia e o cavalo como objeto transicional . Brasilia, 2007. Disponível via internet pelo sitio: http://www.equoterapia.org.br/trabalho_pesquisar
  
SCHUBERT, R. - A equoterapia como alternativa terapêutica para crianças agitadas - Revista Equoterapia ANDE, Brasília, N. 12, Dezembro 2005
 
UZUN, A.L. – Equoterapia: aplicação em distúrbios do equilíbrio. Ed. Vetor, 2005
WICKERT, H. - O cavalo como instrumento Cinesioterapeutico - Curso da ANDE-BRASIL, Brasília, 1995.  Disponível via internet pelo sitio: http://www.equoterapia.org.br/trabalho_pesquisar

WINNICOTT, Donald W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.


Sobre este artigo:  escrito pelo psicólogo e equoterapeuta René Schubert, apresentado III Congresso de Psicologia: ciencia e profissao. Equoterapia :relato de caso. 2010

Publicado em Março de 2022 pela revista online Britânica MAR - Medical Research Publication  como: Hippotherapy and playfulness in Child Rehabilitation - https://www.medicalandresearch.com/journals/view_article/1047

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