Juliana Carvalho, integrante do Blog Sem Barreiras, entrevistou-me a respeito do trabalho de orientação sexual com crianças especiais. A entrevista na íntegra segue abaixo:
1. Como era o trabalho de orientação sexual com crianças e adolescentes com deficiência intelectual que você realizou no Lar Nossa Senhora de Lourdes?
O trabalho teve duração de três anos e foi bem sucedido, à medida que representou um desafio e busca não só para os participantes do grupo como para todos os profissionais que foram envolvidos direta ou indiretamente. Há pouco material teórico e prático disponível sobre a orientação sexual com jovens especiais, então foi necessário desenvolver seu saber junto ao público atendido, que foi muito paciente participativo e responsivo ao trabalho.
Ao entrar no Centro Pedagógico e Reabilitativo Recanto Nossa Senhora de Lourdes percebi a necessidade de trabalhar os fenômenos da sexualidade presentes de maneira desorientada e insistente entre jovens portadores de necessidades especiais, com idades variando de 14 a 18 anos (por vezes até mais novos, 9 a 11 anos), que estavam trazendo muitos transtornos às educadoras, pais e influenciando negativamente os mais jovens. Os adolescentes estavam interessados em seu corpo e no corpo do outro, sentiam prazer no jogo e na descoberta sexual e estavam sendo muito influenciados por um programa de TV em particular, que expunha de maneira grosseira a sexualidade, sem orientá-los. Eles tinham interesse pelo seu corpo despertado, mas não tinham orientação ou um espaço que pudessem questionar sobre tais interesses e fenômenos. Surgiu então a questão: como trabalhar o tema da sexualidade com crianças portadoras de necessidades especiais de maneira adequada?
Sugeri, junto a direção e coordenação, a criação de um grupo de orientação sexual para estas crianças. A idéia inicialmente causou polêmica e resistência, muitas educadoras inclusive questionaram se isto não aumentaria ou pioraria os fenômenos em questão. Foi necessária uma explanação teórica e de orientação sexual com os educadores e equipe clínica, pois todos participariam direta ou indiretamente deste projeto. Em seguida, convidei os pais e responsáveis dos jovens a participar do grupo de orientação sexual e expus esta idéia – os familiares aceitaram e tiveram esclarecidas muitas dúvidas que lhes foram respondidas em encontros coletivos ou individualmente nas orientações familiares. Muitas vezes era necessária uma orientação sexual inclusive com os pais e familiares. As resistências e medos precisavam vir à tona para serem refletidas, trabalhadas e, se possível, elaboradas. Os pais seriam parte importante deste trabalho, pois dariam seqüência a este em casa, à medida que respondessem as dúvidas dos jovens ou encaminhassem para as educadoras ou para o grupo de orientação sexual.
Foram então chamados os jovens ao grupo. O primeiro grupo foi restrito a 10 jovens, aqueles que apresentavam maiores fenômenos de exacerbação sexual e tinham forte influência sobre os demais colegas. Eram 7 garotos e 3 garotas. Pela característica do público atendido pela Instituição, os quadros clínicos presentes eram diversos (Sd. de Down, Sd. de Williams, Sd. X-Frágil, e outras síndromes genéticas e neurológicas).
A expectativa dos jovens era grande. Queriam saber o que era “sexo”, “punheta”, “viado” e outras dúvidas mais. Os primeiros grupos foram baseados nas perguntas que traziam e algumas explanações. Logo se formou forte vínculo com os jovens, pois perceberam que as perguntas eram permitidas e que podiam falar besteiras e “coisa proibida”(sic). Fiz um acordo com eles que o que trabalhássemos dentro do grupo permaneceria nele e pedi que me ajudassem, quando estivessem fora do grupo, a orientar os colegas quando estes se mostrassem inadequados. A partir daquele momento, o grupo responderia todas as dúvidas e ensinaria desde que respeitassem os outros colegas, o grupo e o espaço da Instituição. Eles aceitaram o acordo e se sentiram importantes por serem portadores desta responsabilidade. Realmente me auxiliaram muito com suas questões e com as ocorrências que traziam e para as quais pediam orientação.
Utilizei material didático diverso, desde livros e apostilas didáticas sobre sexualidade, trabalhos com colagem e recorte, grafismos, até vídeos e DVDs sobre desenvolvimento corporal, gestação, diferenciação sexual.
Tive de retomar temas repetidas vezes, usando diversos métodos e materiais educativos. Aos poucos percebeu-se que as dúvidas se tornavam mais elaboradas e a partir de um conhecimento pré-existente coerente.
Nos 3 anos desse trabalho houve grande rotatividade de participantes. O grupo, inicialmente de 10 participantes, chegou a apresentar até 18, sendo mantidos, sempre que possível, os participantes mais "antigos". O grupo misto, de meninos e meninas, era mais interessante e dinâmico - tanto para mim como para eles – já que a “competição entre os sexos” estimulava o querer aprender e saber mais.
Por haverem jovens que não conseguiam se comunicar verbalmente ou por terem maior dificuldade de compreensão foram necessárias formas diferenciadas de transmitir a informação e, neste sentido, os demais jovens me auxiliaram muito dando dicas de como estimular e desenvolver uma temática.
Fizemos grupos de dramatização, pintura, desenhos, palestras – sempre voltados a temáticas de orientação sexual. Fomos de temas como estupro e abuso para beijo e ficar; de uso de camisinha até sexo anal; diferenças entre meninos e meninas a homossexualismo e travestismo. Os temas eram variados e trazidos muitas vezes pelos jovens ou estimulados por mim por meio de acontecimentos relatados em revistas, jornais, novelas, desenhos animados, etc.
Muitas foram as variantes e o espaço aqui é curto para apontar a abrangência que o grupo foi tomando e desenvolvendo. Os demais profissionais da Instituição participavam indiretamente do grupo e percebiam bons resultados que eram relatados na forma de feedback positivo.
As educadoras me relatavam sobre dúvidas em biologia e sexualidade que começaram a surgir, de forma mais organizada, em sala de aula e também observaram a visível diminuição de fenômenos de exacerbação sexual, desrespeito e comportamentos inadequados nesse ambiente.
Pude verificar o desenvolvimento e aprendizado dos jovens, por meio de gincanas promovidas entre meninos e meninas, nas quais estes expunham seu conhecimento utilizando as apostilas, desenhos, perguntas, etc. A noção que adquiriram de seu próprio corpo e dos fenômenos a este ligados já eram muito importantes e traziam maior autonomia, segurança e, claro, conhecimento.
2. Como ampliar o debate sobre os direitos sexuais das pessoas com deficiência intelectual?
Seguindo o exemplo de profissionais como Mina Regen, Marta Suplicy, Dr. Jairo Bouer, entre outros (envolvidos na divulgação da orientação sexual e da inclusão), que informatizam, desenvolvem reflexões, questionam, trazem temas polêmicos e práticos do dia a dia na forma de programas de TV, de internet, livros, entrevistas a rádios, divulgação em revistas e palestras, conferências.
É preciso trazer esta temática e suas questões à tona e problematizá-las. Não deixá-las escondidas, envergonhadas em um canto escuro e excluso de nossa sociedade.
Se os profissionais das áreas de educação, saúde, direito e outras abordarem e debaterem este tema, refletirem na forma de congressos, palestras, conferências, eventos, voltados ao grande público, isto trará muito esclarecimento a população e novas alianças, saberes, projetos, possibilidades.
É importante o movimento - por parte de pais e familiares de crianças e jovens especiais - de tornar suas dúvidas, histórias, questões, e direitos claros e conhecidos por meio de meios da divulgação em mídias, grupos de encontro, Instituições Sociais, etc.
3. A pessoa com deficiência intelectual tem o estigma de ser assexuada e de não possuir os mesmos desejos e vontades que as outras pessoas. Como mudar este cenário?
Este estigma parte da ignorância de nossa sociedade e sua solução é exatamente o fornecimento de informações pontuais e corretas sobre o assunto. Cabe assim, às entidades - como as representadas por nosso Estado, Secretarias da Educação e Saúde em união com Instituições Sociais e privadas - o papel fundamental de instrumentar profissionais competentes, fornecer e favorecer o espaço de aprendizado, reflexão e elaboração de temas como este.
A pessoa com deficiência intelectual, assim como a com problemas psiquiátricos e portadores de necessidades especiais, possuem um corpo e fenômenos corporais como todo humano – e vão, como todo humano, à sua maneira, buscar formas de conhecer, descobrir, fundamentar e sentir o mesmo.
Todos os humanos tem libido e manifestam, cada qual a sua maneira, esta energia sexual.
Cabe aos nossos profissionais da área da saúde, educação e outras trazerem o conhecimento sobre sexualidade humana e orientação sexual para as classes menos favorecidas ou menos informadas.
Neste sentido, a mídia tem grande abrangência e importância, como pudemos verificar com a abordagem bem sucedida e inclusiva de personagens portadores de necessidades especiais em novelas da Rede Globo de Televisão.
Palestras, eventos sociais e culturais, conferências, congressos, entre outros são formas de desenvolver e divulgar o conhecimento e o saber de uma classe específica para uma outra, fazendo o trabalho de ampliação do conhecimento e conseqüente dissolução de preconceitos, receios, temores e ignorância.
4. É comum violência sexual contra pessoas com deficiência intelectual? Por que isso acontece e como prevenir?
Sim. Não saberia mensurar a incidência em relação a abusos ou violência sexual contra outras pessoas, mas contra pessoas com deficiência intelectual isto, infelizmente, ocorre - acompanhei alguns casos desta natureza no ambulatório – tanto na parte de avaliação como de acompanhamento psicológico.
A melhor forma de prevenção é exatamente a orientação sexual com o jovem e o trabalho de orientação com a família ou responsáveis. Com o alto índice de abusos sexuais contra menores e pedofilia, a orientação sexual se torna importantíssima ferramenta de prevenção, pois ensina o jovem a cuidar de seu corpo e fazer respeitar sua individualidade, intimidade e integridade física.
5. As relações afetivas e sexuais são o tema mais controverso e cercado de preconceitos no universo da deficiência intelectual. Por que tanta polêmica?
A sexualidade é um tema polêmico em si.
Quando Freud publicou os “Três ensaios sobre a sexualidade”, em 1905, foi duramente criticado pela sociedade vienense da época. Muitas dessas críticas movidas pelo medo e pela ignorância ainda vigoram até hoje. Exemplo disso são aqueles que dizem que se você falar sobre sexualidade com uma criança ela poderá se tornar um “tarado” ou “pervertido”, sendo que a prática comprova, exatamente, o contrário.
Hoje em dia, temos suficiente embasamento teórico e prático que comprova que o debate e informação sobre sexualidade é interessante para o público em geral e para os jovens; as perguntas vão surgir, de forma natural e espontânea, e devem, ser ouvidas e respondidas com naturalidade e espontaneidade. Estamos falando de nosso corpo e dos fenômenos dele, não há por que esconder ou encobrir.
Por isto é fundamental que Estado e Iniciativa Privada incentivem e desenvolvam a orientação sexual nas áreas da Educação e Saúde – bases para o desenvolvimento de nossos cidadãos. Promover um espaço de reflexão, informação e debate é fundamental para que temas, antes vistos com preconceito e ignorância, possam ser abordados livremente, construindo novos saberes.
6. Como trabalhar as questões de superproteção e repressão junto com as famílias?
Bem, neste aspecto não há uma resposta precisa, pois em cada família esta proteção e repressão se mostrarão de uma forma particular. Assim, é preciso estudar cada caso para, a partir das singularidades deste, desenvolver uma estratégia de atuação.
É sabido que a superproteção e repressão não são saudáveis para nenhuma criança, justamente, por privá-las da espontaneidade e curiosidade essenciais para o desenvolvimento físico, cognitivo e psíquico sadio.
7. Existem números sobre gravidez de mulheres com deficiência intelectual e também sobre contaminação com DSTs?
Sim existem, porém desconheço a estatística com precisão.
Os casos ocorrem, muitas vezes, por descuido da família e pela busca sexual por parte do e da jovem sem os devidos cuidados anticoncepcionais ou, o que é mais grave, devido a abusos sexuais.
As DSTs são um risco sempre que há trocas sexuais.
Por isso que a orientação sexual é fundamental, como prevenção à gravidez não planejada, às doenças sexualmente transmissíveis e aos cuidados da vida sexual ativa.
A partir do momento em que se fornece ao jovem um espaço de expressão e de orientação, ele vai ao seu encontro trazendo muitas questões que podem ser trabalhadas, debatidas, programadas e planejadas.
8. Ainda há famílias que recorrem à esterilização de pcds. Como o você enxerga essa questão?A quem cabe decidir se as pcd intelectual podem fazer sexo e ter filhos?
Esta é uma questão espinhosa tanto na área da saúde como do direito.
Muitos jovens especiais, realmente, teriam muita dificuldade para exercerem a paternidade ou a maternidade, por não terem autonomia e independência; isso faz com que alguns pais recorram a métodos de esterilização. No entanto, tal situação precisa ser muito bem estudada pela família e pelos profissionais que acompanham o caso – não se pode padronizar este procedimento.
Cada caso, mesmo tendo um CID-10 ou nomenclatura sindrômica determinadas, possui singularidades que precisam ser vistas, escutadas e estudadas.
Há casos onde este procedimento é indicado, outros em que não – muitas vezes os pais decidirão em nome do filho(a). Mas em todos os casos, o debate e a problematização da questão junto a profissionais competentes é fundamental antes da tomada de decisão por parte dos pais.
Tal temática ainda precisa ser refletida e debatida exaustivamente em congressos, conferências e trocas acadêmicas e sociais em nossa cultura.
9. Quais os principais temores dos pais de quem tem deficiência intelectual no que diz respeito à sexualidade?
Quando os pais se dão conta de que os filhos “tem sexualidade”, o que geralmente ocorre um tanto tarde, inicialmente vem a vergonha e o sentimento de culpa, que os impede muitas vezes de conversar ou orientar o filho(a), mas na maioria das vezes o principal medo é de que haja uma relação sexual – independente se com um namoradinho ou com um agressor sexual, o medo está em ocorrer uma relação sexual – exatamente devido a crença, que você mencionou na pergunta acima, de que sejam “assexuados” ou “anjos”. A idéia de que tenham uma vida sexualmente ativa assusta e levanta muitas fantasias e temores nos pais. Por isso, é fundamental incluir os pais na orientação sexual que se faz junto aos jovens especiais, para que eles também saibam como proceder e trabalhem suas próprias crenças, fantasias e dúvidas em relação a sexualidade do filho(a) e sua própria.
10. E o que pensam as próprias pessoas com deficiência intelectual a respeito de sua sexualidade?
Cada qual enxerga e recorta seu corpo de uma maneira singular, a partir de sua cultura, aprendizado, experiências de vida, potencialidade e limitações. Não é diferente para a pessoa com deficiência intelectual. Ela tem um esquema corporal e tem dúvidas sobre o mesmo; tem fenômenos físicos e perguntas insistentes e marcadas sobre estes; ela se favorece de um espaço ou de uma pessoa que a elucide de suas questões e dúvidas. Sente-se acolhida e desenvolve a autonomia e poder sobre este corpo, em seu próprio tempo, em seu limite, com suas possibilidades e peculiaridades.
11. Algo mais que queira acrescentar?
O tema é abrangente e tem muitas variantes, espero nesta entrevista, de forma sucinta ter estimulado e mostrado o quanto este trabalho é importante e gerador de frutos positivos.
Na evolução do grupo de orientação sexual este espaço, originalmente de orientação sexual, tornou-se um espaço de expressão. Expressão de medos, vontades, angústias e desejos. Tornou-se um grupo especial, não por ter participantes portadores de necessidades especiais, mas por proporcionar um aprendizado e troca especial para aqueles que dele participavam. O grupo, cujas atividades foram realizadas de 2006 a 2008, contou com alterações em sua estrutura e rotatividade de participantes, mas ficou conhecido por todos os jovens da Instituição, pois os colegas que dele participavam, compartilhavam seu conhecimento com os demais e traziam novas dúvidas ao grupo. Acredito que é desta forma que se constrói o saber.
Entrevista publicada dia 06/03/2010, sob o titulo: “Sexualidade e Síndrome de Down”
Artigos escritos e publicados por René Schubert sobre esta temática:
Orientação sexual: uma experiência com crianças especiais. Dementia & Neuropsychologia, v. vol 1, p. 21-22, São Paulo, Brasil, 2007.
Orientação Sexual com crianças especiais relato de experiência. In: Ana Marisa Brito (Psicóloga); José Santos (Professor); Pedro Santos (Professor). (Org.). Contributos ao estudo da Deficiência Mental. Universidade de Algavea, Portugal, 2007.
Educação sexual: relato de uma experiência com jovens portadores de necessidades especiais. REVISTA PRIMUS VITAM Nº 9 – 1 semestre de 2017 – ANAIS – II Congresso Internacional e VII Congresso Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizagem - ISSN 2236-7799 - Centro de Educação, Filosofia e Teologia (CEFT): http://delphos-gp.com/primus_ vitam/primus_9_txt.htm
Group Experience of Sex Education with Special Children: A Systemic View. Medical and Research Publications - Journal of MAR neurology and psychology, Volume 5; Issue 1, United Kingdom, 2022 (in) https://www.medicalandresearch.com/journals/view_article/1297
Jô Nunes e Associação Brasileira de Síndrome de Williams (ABSW) convidam o psicoterapeuta e psicanalista René Schubert a abordar a educação sexual com crianças especiais e orientação à pais, responsáveis e educadore(a)s. Palestra-aula ocorrida em Maio 2021
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